Durante as investigações para escrever o livro Farmáfia: falcatruas nos balcões de farmácias, o autor atuou como balconista por um mês em uma farmácia de Brasília. Na farmácia a trocação enganosa de medicamentos da receita era prática comum, a exemplo do que acontecia com os contraceptivos injetáveis como a Perlutan, Uno Ciclo e Mesigyna, que eram trocados pelo Contracep, o beó campeão de fraudes no segmento fabricado pelo laboratório EMS.
O autor do livro liga o gravador e pergunta ao dono da farmácia em Brasília como é feita a troca da Perlutan pelo Contracep bonificado:
— Como você faz pra trocar o Perlutan pelo Contracep?
— Eu troco a caixa! Eu pego a caixa da Perlutan… Só que tem que fazer bem feito!!! Se eu não estiver aqui, você faz! Ela (a cliente) chega e fala: ‘Eu quero tomar Perlutan’ Aí você pega uma Perlutan, chega lá (na sala de aplicação), você tira a Perlutan (tira a ampola da embalagem) e troca pela ampola da Contracept ou outra qualquer que tiver, tá, que no caso já fica lá na gaveta com as seringas! No caso ela já tá lá! (devidamente preparada, sem a embalagem, na sala de aplicação) Você quebra sem ela vê e aplica!!
— A Contracep é mais cara? Qual a diferença?
— Não! Você tem que cobrar o mesmo preço! Você vai cobrar o preço da Perlutan!
— É porque tem muito Contracept, é?!
— Não!!! Você não está entendendo! A Contracept é bonificada! Se você aplicar a Perlutan você não vai ganhar comisssão! A porcentagem de lucro da Contracep é bem maior!
— Há tá… E quanto você cobra?
— Eu cobro o preço da Perlutan, que é R$ 18! A cliente chega, eu coloco a Perlutan na mão (sic), aí eu pego, tiro a ampola da caixa, dou uma disfarçada, enfio a ampola da Perlutan no bolso e jogo a caixinha ali na vista dela! Pode jogar até no lixo, depois você vai e tira! Se a a mulher que tomar pegar bucho (sic) a culpa não é nossa, não é?! É do laboratório! Você primeiro vai e pega uma Perlutan aqui, vai na salinha e prepara… Depois você fala assim: ‘Pode entrar, tá pronto!… Eu cobro o preço da Perlutan Porque senão ela vai perceber a mutreta! Está entendendo?! A cliente chega, eu coloco a Perlutan na mão (sic), aí eu pego, tiro a ampola da caixa, dou uma disfarçada, enfio a ampola da Perlutan no bolso e jogo a caixinha por ali, na vista dela! Pode jogar até no lixo, depois você vai e pega! Se a mulher que tomar a injeção trocada pegar bucho (sic) a culpa não é nossa, não é?! É do laboratório!
Troca da Perlutan e Mesigyna por beó é prática comum
Balconistas e farmacêuticos fazem a troca da Perlutan e da Mesigyna pela Contracep porque o lucro da farmácia com a venda do beó é muito maior.
E para o produto não ficar encalhado na prateleira, já que médico nenhum prescreve o produto bonificado e reincidente em fraudes, a farmácia paga propina de 10% para balconistas e farmacêuticos fazerem a empurroterapia.
Farmácia tem lucro de 40% para vender a Perlutan e de 200% para empurrar a Contracep
Só para o leitor ou leitora fazer ideia do lucro das farmácias com a
empurroterapia do Contracep, o Perlutan e o Mesigyna oferecem margemmédia de lucro de 40%. Já o Contracep comprado por cerca de R$ 11,30 é vendido por R$ 30. Ou seja, a farmácia tem lucro de quase 200% para empurrar o beó com tradição em fraudes.
No caso da troca da Perlutan e da Mesigyna pela Contracep as clientes são suplamente enganadas: primeiro porque recebem a medicação diferente da prescrita pelo médico e segundo porque ainda pagam pelo preço de produto: ou seja, o balconista ou farmacêutico aplica a Contracep e ainda cobra o preço da Perlutan ou da Mesigyna.
Farmacêutico incentiva troca da Perlutan e da Mesigyna com propina de 10%
A prática criminosa é antiga e acontece com muita frequência em farmácias de todo o Brasil. Já no primeiro dia de trabalho na farmácia em que atuou para investigar na Grande São Paulo, em 2018, o autor do livro Farmáfia: do outro lado do balcão, pergunta o gerente-farmacêutico-atendente se pode trocar a Perlutan e a Mesigyna por similar para ganhar bonificação.
Contracep do EMS é reincidente em fraudes
Em 2007 o Grupo NC vendeu milhares de ampolas do Contracep fraudadas à Secretaria de Saúde de São Paulo. Após reclamações de pacientes —com dor, inchaço e inflamação no local da aplicação—, testaram amostras do produto e descobriram falsificação grave: além de problema na dissolução, o princípio ativo
do remédio “capeta” fornecido pelo SUS estava 25% abaixo do recomendado para evitar a gravidez. Após 2007, na tentativa de mascarar o envolvimento nas fraudes, o Contracep adotou a marca Germed.
No entanto, novamente em 2014 amostras do Contracep Germed reprovaram nos testes feitos pelo Instituto Adolfo Lutz após várias mulheres engravidarem utilizando o contraceptivo: o princípio ativo do beó novamente fornecido às mulheres pelo Governo do Estado de São Paulo outra vez estava abaixo do
indicado e não era eficaz para evitar a gravidez.
Só para ganhar a bonificação, muitos balconistas e farmacêuticos aplicam o beó Contracep no lugar do Perlutan e Mesigyna como se fosse genérico. No entanto a formulação dos contraceptivos são completamente diferentes.
Na transcrição de trecho da filmagem com câmera escondida em farmácia da Grande São Paulo em 2018, que se segue abaixo, o farmacêutico-gerente explica como praticar o golpe para ganhar bonificação:
“Pode trocar, fala que é um genérico! A cliente chega e você desenvolve ali, tal… Pá, pá! Você recebe comissão de dez por cento! Então aí você aumenta mais a tua comissão, entendeu?! O que acontece… Não crio confusão com o balconista! Respeito a venda dele!”